TESTAMENTO QUEIMA DO JUDAS
VILA DO CONDE
2020
TESTAMENTO QUEIMA DO JUDAS
VILA DO CONDE
2020
Refrão
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
I
As ruas estão desertas;
O Tempo por ora parado;
As vontades não são certas
— Anda o povo mui frustado
Não há ceia pra ninguém,
Nem mesa para tantos.
A fome não olha a quem
— Do altar caiem os santos
Sem samba e sem lambada,
Vê-se assim nossa gente,
Sem sorte, amotinada;
Tudo longe e ausente.
II
Às baratas chamam tontas;
Tonto também aquele é
Que faz com o cu as contas
E tem em casa bidé.
Deste papel ninguém tira
O nós que a todos une,
A solidão que nos mira
Desta janela imune.
Do pequeno ao crescido,
Nenhum a ele escapa
— Bicho mau aparecido,
De rompante, neste mapa.
Refrão II
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
III
Que mal estava o mundo
E as vistas de quem o via.
Mais um passo e era fundo
— Merecido era tal dia.
Abre-se hoje o olhinho
(Até quando, não sabemos).
Encha-s’o copo de vinho!
Antes de tudo, folguemos.
É sempre boa a festa!
Ó v’zinho junte-se aí:
Viver o tempo que resta!
O fim não mora aqui.
IV
De governar só pra si
Os políticos pausaram.
Amamentados por ti,
Medidas desencantaram.
À varanda batem palmas,
Aqueles que guardam fé;
Amansam o mar nas almas;
Davam tudo por’um café.
Se um cheirinho houvesse
— O mal logo reduzido.
Raios! Era quem te desse
Com o Belzebu benzido.
Refrão III
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
V
Na têvê fala-se à vez;
Contam-se quase verdades,
Quase quase ou talvez;
Soltam-se as liberdades.
Todo o cuidado é pouco:
Começa a quarentena;
Cada um acaba rouco,
A encerar sua antena.
Do poema à cantiga,
Cada um dá o que pode.
A bondosa mão amiga,
O gesto que nos acode.
VI
Da álgebra linear,
Ninguém poderá fugir;
Nosso drama vai durar.
Só os tolos se vão rir.
Os velhos são os primeiros
— Já estavam esquecidos.
Doutores e enfermeiros,
São hoje reconhecidos.
Todos querem breve fim;
Voltar à mesma rotina.
Há quem dê seu útil rim,
Pra que não cai’á cortina.
VII
Planeta em alvoroço,
A peste a espreitar.
Só nos cabe um tremoço!
— O medo vem almoçar.
Fica em casa — vós pedis;
Em jeito de quem ordena.
Vosso ousar não medis,
Vossa soberba acena.
O bem de todos s’impõe
— Dizes tu, com sensatez;
Já o‘mbigo contrapõe:
É preciso robustez!
Refrão IV
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
VIII
Esta noite vai já longa;
Tard’a aurora em chegar.
Há quem tente a candonga,
E tudo açambarcar.
Usar máscara ou não
— Assim vai o Carnaval!
Import’é lavar a mão,
Nesta lua medieval.
Desinfectar sua boca,
Pode parecer de mais;
Se a cabeça for oca,
Sempre se poupam uns ais.
IX
É sábado e é noite,
Não há febre, nem sinal
Qu’este fogo vos açoite;
Sorri! Não será por mal.
Esperavas, certamente,
Minha língua afiada
(Algo está diferente),
Mostra-se agoniada?
Compaixão também sinto
— Não precisais estranhar.
Nesta verdade vos minto,
P’ra não me envergonhar.
X
Tanta carga a vós deixo
Que a meti num contentor;
Não foi, não senhor, desleixo,
Nem meu coração traidor.
Há quem não olhe a meios,
Para atingir seus fins.
A esses mostro os seios
Que sabem a berbequins.
Diz que roubar a ladrão
(Acto que jamais ousei)
Dá cem anos de perdão
— Esse nunca eu achei.
Refrão V
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
XI
Tudo a preço da China,
Gostavas vós de comprar.
Tão grande era a mina,
Não havia como fechar.
Ó Corona seu ingrato,
Que bem que tu nos tramaste;
Preferes lebre por gato,
Que tarde nos avisaste.
Vamos ter de começar,
De novo a aprender;
À escolinha voltar;
Em nossa casa fazer.
XII
A natureza agradece
Esta forçada paragem.
O futuro não aparece,
Sem uma boa lavagem.
Consumo desenfreado,
Consciência senil;
O amanhã abismado
— Vossa sandes de pernil.
Querias tudo pra ontem;
Hoje não sabes que fazer,
Sem que outros te apontem
Caminho a percorrer.
XIII
Anseias a Primavera
Mas recebes o Inferno.
Qualquer um se torna fera,
Por muito que seja terno.
Ver-se assim enjaulado,
Não é coisa desejada;
Houvesse um rebuçado,
Pra lembrar nossa amada
Família e amigos
— esses pilares d’outrora,
Desses tempos nunca idos
Dos corações para fora.
Refrão VI
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
XIV
A vós, que sois artista,
A sorte é bafejada;
Dão-vos um pouco d’alpista
— Ai que bela bordoada!
Não será projecto fácil
— Galinheiro só com galos;
Afaste-s’o gesto vil
De a todos depená-los.
De migalhas sobrevivem,
Estes que tanto amais.
Não permitas que salivem,
Por esse osso que dais.
XV
Fica muito por dizer,
Outro tanto por pensar.
É tempo de o fazer;
Antes isso que boiar.
Há quem lhe declare guerra,
Uns vêem ocasião.
Eu deixo-vos esta terra,
Para que lhe dês a mão.
Façamos ora a festa!
Essa bem anunciada.
Não teime em ser funesta
A mensagem terminada.
Refrão VII
Quem queres queimar?
Quem queres queimar?
Diz tu, agora.
Ou põe-te a’ndar!
Judas 2020
Judas 2020